
Tessa Moura Lacerda
Durante o segundo semestre letivo de 2024, ministrei, no Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, a disciplina optativa Filosofia Geral IV, que trazia por título a frase de Monique Wittig, “Não se nasce mulher”.
O objetivo era refletir sobre a construção do gênero feminino no ocidente a partir de duas autoras: a francesa Monique Wittig (1935-2003) e a nigeriana Oyèrónkẹ Oyěwùmí (nascida em 1957). Partimos de O segundo sexo de Simone de Beauvoir, mas nos concentramos sobretudo nos ensaios de Monique Wittig, traduzidos para o português e reunidos no livro O pensamento hétero e outros ensaios (Belo Horizonte: Autêntica, 2022) e em alguns capítulos do livro de Oyèrónkẹ Oyěwùmí, A invenção das mulheres. Construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero (Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021), também traduzido recentemente para o português.
Na ementa explicávamos nossa proposta assim:
“Não se nasce mulher, torna-se mulher”, afirma a filósofa Simone de Beauvoir no seu incontornável O segundo sexo, publicado em 1949. A “mulher” é uma construção; construção essa levada a cabo por vários discursos – biologia, psicanálise, materialismo histórico… Essa construção, diríamos social, política e histórica, transforma as pessoas percebidas como mulheres em sujeitos subalternos a sujeitos masculinos, ou, talvez pior, em objetos que jamais se erguem à condição de sujeitos. É por isso que Monique Wittig propõe que “mulher” passe a ser entendida como uma classe, e que, como tal, fundamente a luta das mulheres (e dos homens) contra um regime de opressão e de sujeição.
A nigeriana Oyèrónkẹ Oyěwùmí, por sua vez, fazendo uma análise da imposição da diferença de gênero na Oyó (um império África Ocidental localizado no que é hoje o sudoeste da Nigéria e o sudeste do Benim) do século XIX, observa como o pensamento europeu cria um regime sexista e de subalternidade das mulheres em uma cultura que não estabelecia as hierarquias sociais com base nesta divisão de gênero ou no binarismo ocidental (homem -mulher).
O curso examinará os textos de Monique Wittig reunidos em O pensamento hétero e outros ensaios e o livro A invenção das mulheres. Construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero,de Oyèrónkẹ Oyěwùmí, a fim de refletir sobre:
1. a construção ocidental de um binarismo de gênero e,
2. como esse binarismo (homem-mulher) envolve, necessariamente, a subalternização das mulheres.
O curso foi construído a partir de seminários coletivos que envolviam a turma inteira a cada semana: as pessoas deviam ler um ensaio ou capítulo por semana para discutir em sala de aula, primeiro em pequenos grupos e, a seguir, com a turma inteira. Ao final do semestre, sugerimos dois temas possíveis para a escrita de uma dissertação em formato de artigo: “‘Não se nasce mulher.’ Explique esta tese a partir dos pensamentos de Monique Wittig e Oyèrónkẹ Oyěwùmí” ou “Monique Wittig e Oyèrónkẹ Oyěwùmí atribuem à língua e aos sistemas de pensamento um papel fundamental na construção da opressão de gênero. Explique.”. Justamente porque a compreensão dos temas foi feita de maneira coletiva, muitos trabalhos tiveram um roteiro semelhante, por isso, a Revista NÓS resolveu agrupar, neste pequeno dossiê, os trabalhos que foram enviados para publicação. Esperamos que gostem. Boa leitura!
